O TJ-RJ reconhece que foi nulo o acordo feito pelo MP, sem que partes estivessem representadas por Defensor Público.
O inquérito civil não se presta a cuidar de interesse individidual.
Este case é colaboração dos prestigiosos colegas de Campos dos Goytacazes...
"TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
4ª CÂMARA CÍVEL
APELAÇÃO N.º 27467/09
Apelante 1: MINISTÉRIO PÚBLICO
Apelante 2: SANTA CASA DE MISERICORDIA DE CAMPOS
Apelante 3: MUNICIPIO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
Apelados: CONCEIÇÃO DA SILVA e OUTROS
Relator: Desembargador SIDNEY HARTUNG.
APELAÇÃO CIVEL.- ANULATÓRIA DE NEGÓCIO JURÍDICO.-
Nulidade que se confirma em razão de que se firmou sob causa em
sentido objetivo, desvirtuando o fim prático do negócio jurídico.-
LESÃO AO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL NOS MOLDES DO
ART.421, DO CC.- Houve lesão objetiva a parte autora tendo em vista
que o ato realizado não observou uma razão social, com um ganho
desprovido de causa legítima para uma das partes.- MANIFESTO
DESCOMPASSO ENTRE AS PRESTAÇÕES.- DESIQUILÍBRIO
CONTRATUAL.- As circunstâncias que se deram o contrato e
acontecimentos posteriores denotam um evidente prejuízo aos autores,
ante a ausência dos filhos e retirada indevida do imóvel.- NULIDADE
DO INQUÉRITO CIVIL POR NÃO CHANCELAR DIREITOS
COLETIVOS, DIFUSOS OU INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.- O
inquérito civil é um procedimento administrativo que visa chancelar
interesse público. Assim, o Ministério Público exorbitou em sua atuação,
desvirtuando a razão de ser do instituto, preservando interesses de seara
privada.- CERCEAMENTO DE DEFESA.- O negócio jurídico foi
realizado sem a devida representação, nulidade do negócio que se impõe
pelo aproveitamento do estado de necessidade dos autores.-
LEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO.- É clara que houve a
participação do ente em referido acordo nulo, deixando ao desamparo
material , social e jurídica a parte autora, dando causa a prejuízo material
e social.- Manutenção da sentença.- REJEIÇÃO DE PRELIMINAR
DO TERCEIRO APELANTE E NEGADO PROVIMENTO
AOS RECURSOS DO PRIMEIRO APELANTE, DO
SEGUNDO APELANTE E DO TERCEIRO APELANTE, [ER]
\\Dessidneyhartu2\meus documentos\2009 - DECISÕES E ACÓRDÃOS\ANULATÓRIA\AP 27467 VR [09] - anulatória de
negócio juridico.doc
PARA MANTER A SENTENÇA NOS SEUS PRÓPRIOS
FUNDAMENTOS, na forma regimental.
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº
27467/09, em que são Apelantes: Apelante 1: MINISTÉRIO PÚBLICO; Apelante
2: SANTA CASA DE MISERICORDIA DE CAMPOS e Apelante 3:
MUNICIPIO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES, e, Apelados: CONCEIÇÃO
DA SILVA e OUTROS.
ACORDAM os Desembargadores desta 4ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, POR UNANIMIDADE, em NEGAR
PROVIMENTO AO RECURSO, COM A REJEIÇÃO DE PRELIMINAR DO
TERCEIRO APELANTE E NEGAR PROVIMENTO AOS RECURSOS DO
PRIMEIRO APELANTE, DO SEGUNDO APELANTE E DO TERCEIRO
APELANTE, PARA MANTER A SENTENÇA NOS SEUS PRÓPRIOS
FUNDAMENTOS, na forma regimental.
Trata-se de ação anulatória de negócio jurídico com reparação de
danos morais em que os autores pretendem a decretação de nulidade de um acordo
entabulado entre as partes nos autos do Inquérito Civil Público n° 232/04, bem como a condenação dos réus à reparação de danos morais. Alegando: que viviam no imóvel a
mais de 30 anos com uma posse mansa, pacífica, ininterrupta; que foram citados em
uma ação reinvindicatória pela Santa Casa da Misericórdia de Campos para a
desocupação do imóvel; que foram pressionados para desocupar o imóvel sob a
ameaça de seus filhos serem entregues a adoção, e, ao acordarem receberam da
Secretaria de Promoção Social a quantia mensal de ½ salário mínimo e um sacolão
pelo período de quatro meses; que desocuparam um imóvel que tem um valor de
mercado de R$ 40.000,00; que o negócio jurídico (em que se viram privados do
imóvel que possuíam) deve ser anulado porque foi praticado com inúmeros defeitos, a
saber: violação ao devido processo legal, dolo, coação e lesão ( fls.02/27)
Documentos de fls. 28/32.
Deferimento de gratuidade de justiça de fls.33. [ER]
\\Dessidneyhartu2\meus documentos\2009 - DECISÕES E ACÓRDÃOS\ANULATÓRIA\AP 27467 VR [09] - anulatória de
negócio juridico.doc
Citação de fls.35 e 35v, citando o Município de Campos dos Goytacazes e a Santa Casa da Misericórdia de Campos.
Contestação da Santa Casa de Misericórdia de fls. 37/46, alegando
que: a) adquiriu o domínio do imóvel há doze anos, em decorrência de testamento de
Manoel Ribeiro das Chagas; b) a posse injusta exercida pelos autores, por não ser
mansa e pacífica, assim como não perdurou pelo tempo necessário à aquisição do
imóvel por meio de usucapião; c) os autores causaram prejuízos à ré, pois residiram
em imóvel alheio por quase dez anos e se negaram a pagar os alugueres ou a restituir o imóvel; d) o imóvel está em péssimo estado de conservação e expondo a risco de vida; e) que há um inquérito civil instaurado pela Defesa Civil que encaminhou laudo ao MP; f) não houve coação na audiência presidida pelo Promotor de Justiça, e, por isso, requer indeferimento dos pedidos autorais; extinção do processo sem julgamento de mérito; condenação dos autores em litigância de má-fé; todos os meios de provas admitidos, tal como depoimento pessoal dos autores e das pessoas envolvidas no caso. Documentos de fls. 47/87.
Carta precatória de fls.88/89. Mandado de Citação de fls.93/94.
Petição autoral de fls.96/98, com pedido de antecipação parcial dos
efeitos da tutela de mérito. Documentos de fls.99/110.
Contestação do Estado de fls. 111/119, aduzindo que: a) os autores
não sofreram qualquer tipo de coação, pois na audiência havia a presença do MP, da
Assistência Social e da Santa Casa devidamente representada; b) a finalidade do
inquérito era apenas salvar a vida das pessoas que moravam no imóvel, conforme
laudo da Defesa Civil; c) as crianças foram retiradas da companhia dos pais para a
preservação da integridade física delas; d) a questão referente ao direito dos autores usucapirem o imóvel não foi objeto do inquérito civil público; e) não há que se falar em indenização por danos morais ou materiais; f) que o inquérito civil tem natureza administrativa e por isso, as partes envolvidas não precisam ser representadas por advogado; g) que já estão com a guarda dos filhos; h)extinção do processo sem julgamento de mérito; i) condenação nos ônus sucumbenciais.
Contestação do Município de fls. 121/124, enunciado que: a) todos
os envolvidos na reunião que deu origem ao ato que se pretende anular agiram dentro
da lei e cumprindo suas obrigações; b) em momento algum os autores foram [
ameaçados ou coagidos; c) não há dano moral a ser indenizado, uma vez que os
autores se recusaram a sair do imóvel, dando margem ao afastamento dos filhos por
ação da Promotoria de Justiça com atribuições relativas a menores; d) o pedido autoral seja julgado improcedente e, por fim, a condenação dos mesmos em custas e
honorários advocatícios.
Réplicas às fls. 127/134, 144/147 e 148/154.
Despacho do juízo para a manifestação do MP em fls.168.
Ministério Público em fls.169, que opina pelo indeferimento da
tutela requerida.
Tutela antecipada indeferida pela decisão de fl. 170.
Despacho de fls.172v, para que as partes especifiquem as provas
que pretendem produzir.
Os autores em fls.174 enunciam que pretendem produzir provas.
Mandado de intimação de fls.175 e certidão de fls.176.
Petição do Estado de fls.177/178 para enunciar as provas que
pretende produzir.
Petição com informações do patrono da parte autora em
fls.180/181. Documentos acostados de fls.182/184.
À fl. 186 foi nomeado Curador Especial para a autora Conceição,
ante a sua prisão. O MP enunciando em fls.187v, que não tem mais provas a produzir
além das já requeridas pelas partes.
Despacho de fls.189, para que haja a designação de AIJ e
deferindo outros procedimentos, tais como prova testemunhal, depósito do rol de
testemunhas em cartório, entre outros. Ciência da Defensoria Pública de fls.190.
Informações de fls.193. Petição da Santa Casa de fls.194,
cumprindo determinação de despacho e documento de fl.195.
Ofício do MP ao juízo de fls.196.
Em fls.197, com a expedição de mandados. Petição do Município
de fls.198. Petição autoral de fls.199, com a apresentação do rol de testemunhas.
Expedição de mandados de fls.200. Manifestação de intimação de fls.202/204.
Manifestação da Curadoria Especial às fls. 206/208, requerendo a
reconsideração do despacho de intervenção da curadoria, tendo em vista que apesar do autor estar preso, há patrono ou assistente constituído. Contudo, nota que o acordo padece de vício, pois houve audiência pública sem a observância do devido processo legal. Por isso, entende que apesar do MP estar envolvido, não o fez por dolo ou má-Fé, tratando-se de vício objetivo, sendo prudente a juntada de outras atas semelhantes,
em que envolvesse a proteção das pessoas que se encontram em situação precária e
insalubre habitação, que não envolvam a Santa Casa de Misericórdia, a ser requerido
pelo juízo.
Mandado de intimação de fls.209/212. Petição de fls.213/214 da
Santa Casa. Documentos de fls.215/217. Mandado de intimação de
fls.218/219.Audiência de instrução e julgamento realizada conforme ata de fls.
220/231. Continuação às fls. 238/241. Memoriais às fls. 243/252, 253/264, 265/280 e
282/284.
Ministério Público, fls. 294/297, opinou pela improcedência do
pedido inicial.
Sentença de fls.299/309, julgando parcialmente procedente o
pedido inicial para anular o negócio jurídico consubstanciado no acordo celebrado nos
autos do inquérito civil n° 232/04, restituindo aos autores a posse do imóvel nele
referido. Condenando, por ter havido sucumbência recíproca, divisão de custas e
honorários, e, quando aos autores dispensando de qualquer recolhimento durante o
prazo previsto na Lei n° 1.060/50. Dispensando os dois primeiros réus do
recolhimento de sua parte nas custas em virtude de isenção legal. A Santa Casa ficará
responsável pelo recolhimento de 1/3 da metade das custas. Com o deferimento da
tutela antecipada. Ainda, que não há na inicial pedido de condenação dos réus ao
pagamento de valores relativos a lucros cessantes, o que agrava a situação dos autores,
já que não poderão ser reparados, ao final deste processo, pelos danos materiais
oriundos da indevida privação da posse sobre o bem. E, por fim, deferimento da
antecipação dos efeitos da tutela de mérito para determinar o cumprimento imediato
da presente sentença.
Mandado de intimação de fls.311/320 e mandado de
reintegração de posse de fls.320/323. Auto de reintegração de fls.324 e documento de
fl.325. [ER]
Apelação do Ministério Público de fls.327/330 aduzindo:
reforma da sentença, tendo em vista que o laudo produzido pela Defesa Civil
demonstrou o estado precário do imóvel; condição confirmada por várias testemunhas;
que há um acordo entabulado e que as partes sabiam da existência de riscos estruturais no imóvel; que não há lesão, já que não houve renuncia a direito de propriedade sobre o imóvel; reconhecem a propriedade da Santa Casa; que havia concordância do casal
para a desocupação do bem e aceitar a ajuda da Prefeitura; que embora haja acordo de
desistência da Santa Casa da ação de reintegração, o direito dos autores não foi
afetado em ação de usucapião proposta em outra ocasião; que na ação de usucapião
será verificado direito dos autores a usucapir e por fim, pugna pela reforma da
sentença com o provimento do recurso.
Petição da Santa Casa de fls.331, com interposição de recurso
de apelação.
Apelação da Santa Casa de fls.333/349, alegando que: a ação
anulatória foi uma simulação arquitetada pelos autores; que é a proprietária do imóvel,
conforme documentos acostados nos autos; que o registro é de 1994; que por diversas
vezes quis acordas amigavelmente com os autores, sem sucesso; que a Defesa Civil
interditou o imóvel; houve uma ação reivindicatória que restou prejudicada após
acordo consensual; da instauração do inquérito civil público; que o prédio corria risco
de desabamento; que o negócio jurídico não é nulo; provimento do recurso para que
não se anule negócio jurídico perfeito e devolva a posse do referido imóvel ao
apelante. Documento de fls.350/356.
Apelação do Município de Campos dos Goytacazes de
fls.357/360, que pugna: pela reforma da sentença; que há laudo técnico da Defesa
Civil encaminhado ao parquet para adoção de providências necessárias a eliminação
de risco e retirada da família que ocupava o bem imóvel; houve a instauração de
inquérito civil público e foi observado o principio da legalidade estrita; inércia da
parte autora; há comprovação testemunhal e da apelada do estado precário do imóvel;
inexistência de omissão ou ação por parte do apelante que deu causa a prejuízo e, por
fim, improcedência dos pedidos formulados.
O Estado do Rio de Janeiro em fls.362, vem participar que não
vai interpor recurso contra a r.decisão, conforme dispensa contida no Processo
Administrativo nº E-14/31382/04.
A Santa Casa de Misericórdia de Campos em fls.363/364,
expondo que: os autores são moradores não consentidos de imóvel de sua propriedade;
além disso que, já haviam consensualmente se retirado do imóvel por força de acordo
com o parquet; que a sentença foi julgada sem esperar o julgamento das ações
possessórias em curso; concessão dos efeitos suspensivo e devolutivo; requer
mandado de intimação para que os autores, informando que estão proibidos de
realizarem quaisquer obra ou melhoria no imóvel, já que só possuem a posse e não o
domínio.
Decisão de fls.367, recebendo as apelações no efeito devolutivo
e, quanto às fls.363/364, nada a prover, tendo em vista o processo já sentenciado.
Contrarrazões da parte autoral em face do Ministério Público
Campos de fls.369/387, esclarecendo que: a prova oral é contundente e esclarecedora;
das razões do custos legis; há a ininterrupção e a posse com animus domini; que o
acordo trata de desocupação de imóvel com base na preservação da vida,
independentemente da existência de direito sobre o bem; que o bem já estava na posse
dos apelados há mais de vinte anos; o acordo tratou da desocupação do imóvel, por
estar lá declarado que o imóvel pertencia à Santa Casa, logo, a cessão de direito de
posse não foi inserida de modo expresso no texto do ajuste, mas que ocorreu; os
apelados pretendem reconhecimento de direito sobre um imóvel de que já tinha sido
desapossados; que já havia um comunicado de que a Defensoria faria o patrocínio de
seus interesses, e, ainda, assim, houve acordo sem a assistência de nenhum
profissional; a audiência pública foi celebrada sem a garantia do devido processo legal
aos apelados; que o acordo foi utilizado para a solução de um conflito de natureza
privada e, não havia porque além da desocupação de imóvel em ruínas, o acerto de um
compromisso de devolução do imóvel; que o MP exorbitou nas suas atribuições e, por
fim, negar provimento ao recurso e manter a sentença.
Contrarrazões da parte autoral em face da Santa Casa de
Misericórdia de Campos de fls.388/408, esclarecendo que: a prova oral é contundente
e esclarecedora; há a ininterrupção e a posse com animus domini; das razões da Santa Casa; da delimitação da causa de pedir e da pretensão deduzida pelos apelados; que o
direito de propriedade deve ser tratado em ação própria; os apelados sofreram
manifesta lesão em razão do acordo em inquérito civil público, estando em premente
necessidade; o condicionamento da desocupação à restituição de seus filhos e, por fim,
negar provimento ao recurso e manter a sentença.
Contrarrazões da parte autoral em face do Estado do Rio de
Janeiro, do Município de Campos e da Santa Casa de Misericórdia de Campos de
fls.402/408, esclarecendo que: a sentença apelada deve ser confirmada, tendo em vista
que o apelante participou do acordo lesivo; que o negócio jurídico foi prejudicial e
lesivo; que o MP se absteve de apresentar recurso contra a sentença, conforme fls.362
e, por fim, negar provimento ao recurso e manter a sentença.
Parecer do MP de fls.411/412, que opina pelo conhecimento e
provimento dos recursos de fls. 331/360, e, conhecimento e provimento do recuso
ministerial de fls.327/330.
Parecer da Douta Procuradoria de Justiça de fls.416/422, que
opina pelo conhecimento e desprovimento dos recursos.
É O RELATÓRIO.
Inicialmente passa-se a análise do primeiro recurso do
Ministério Público de fls.327/330.
Note-se que não lhe assiste razão em suas alegações pelas
razões que se passa a expor.
A sentença não merece reparo tendo sido escorreita em sua
fundamentação.
Como bem analisou o Douto Magistrado, não houve dolo por
parte do Ministério Público, mas houve exorbitância de suas atribuições, pois o
inquérito civil público instaurado somente se justifica em decorrência dos riscos de
desabamento do imóvel, os quais envolvem questões ligadas a interesses
indisponíveis.
Bem se vê na sentença que houve a utilização do inquérito civil
público como meio de solucionar um conflito de natureza privada, entre os autores e a
Santa Casa, ultrapassou os limites legais. Não se questiona o estado precário do imóvel ou o laudo da
Defesa Civil, mas sim o desfecho do acordo entabulado.
Não se olvide que as partes sabiam da existência de riscos
estruturais no imóvel, mas o acordo não tratou apenas da preservação da dignidade
dos autores para preservar a vida acarretando também, interesses de seara privada, e,
assim, desvirtuou a razão de ser do instituto do inquérito civil público.
O inquérito civil público é um procedimento de natureza
administrativa que por não ter sido formatado com a devida representação dos autores
não teve a garantia do contraditório e nem da ampla defesa.
Por isso, quando se trata de direito privados, não se utiliza do
acordo realizado em inquérito civil, que é um procedimento do Estado sob a direção
do Ministério Público que tem como base os interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos.
Ora, os autores não podem validamente reconhecer posse ou
propriedade da Santa Casa, posto que sem a devida participação de patrono para
explicitar termos do âmbito do tecnicismo jurídico. Não havia esclarecimento perene
sobre a cessão do direito de posse, que foi indevidamente incluída no contrato de
forma a assegurar a transferência de posse de imóvel para a Santa Casa.
Ainda, em um Estado Democrático de Direito, não se pode
permitir que um acordo concluído encabulado de nulidade, exclua os preceitos
constitucionais, que são garantias incluídas no rol dos direitos fundamentais.
A aplicação da garantia constitucional há que ser preservada
conforme o princípio do due processo law, que assegura as partes o exercício de suas
faculdades e poderes processuais, indispensáveis ao correto exercício do poder estatal,
com a observância do contraditório e da ampla defesa.
Ademais, também houve a lesão expressa ao devido processo
legal, sem a devida assistência jurídica na esfera extrajudicial.
Não se olvide que os autores saíram de um bem imóvel que já
residiam em torno de vinte anos sob a ameaça de risco de desabamento. [ER]
Nesta premente necessidade de se salvaguardarem acabaram
por assinar um acordo de cessão de direito de posse para a Santa Casa de
Misericórdia, que não era o objeto principal do avençado, mas que foi embutido no
acordo em prol dos interesses da entidade enunciada, vindo de bom grado, já que a
mesma até resolveu desistir de uma ação de reintegração, desapossando os autores do
imóvel sem esperar o tramite de um processo judicial.
E não há que se falar que com tal acordo nenhum direito dos
autores foi afetado, pois com o referido acordo com a Santa Casa de Misericórdia a
defesa da posse encontraria em desamparo, porque para que haja a proteção
possessória se faz necessário que a pessoa sofra uma agressão que corresponda a uma
ofensa com base em situação fática preexistente.
Claro, isso ocorreu porque os autores na data do acordo não
foram auxiliados por patrono, ou seja, a Defensoria Pública, como era de
conhecimento dos apelantes. Além disso, era de conhecimento dos apelantes que os autores
não tinham conhecimento jurídico, profissional e nem social para auferir se tal acordo
iria causar lesão em seus direitos.
Dessa forma, não assiste razão ao primeiro apelante, sendo
certo que o Ministério Público exorbitou nas suas atribuições participando de um
acordo que acabou por amparar direitos privados, eivado de nulidade.
Sobre a nulidade, o negócio jurídico firmado não deve
prosperar, o juiz decidiu com acerto ao anular o acordo, segundo o artigo 168, do
CC/02.
Neste caso concreto, a nulidade tem uma causa em sentido
objetivo, por meio de uma função-econômico social segundo Emilio Betti,
desvirtuando o fim prático do negócio jurídico que foi realizado.
A função social do negócio jurídico não foi obedecida no limite
enunciado pelo art.421, do CC/02.
As partes até poderiam ter firmado tal negócio, mas a liberdade
contratual exercida pela autonomia privada cessa e deve ser limitada, quando o ato
firmado não observa uma razão social, para ter um ganho desprovido de causa
legítima.
A lesão ocasionada à parte autoral é desproporcional pelo
manifesto descompasso entre as prestações, pela disparidade entre as partes neste
negócio, tornando distante a equidade que se espera na formação do contrato até a fase
pós contratual.
Resta por fim, admitir que as circunstâncias que se deram tal
acordo e os acontecimentos posteriores denotam de forma evidente o prejuízo que os
autores sofreram, tais como a ausência dos filhos e a retirada indevida do imóvel.
Mais uma vez, reintera-se que não houve dolus causam dans e
nem dolos incidens na atuação do Parquet.
Rejeita-se as alegações do Parquet.
Agora, passa-se ao recurso do Segundo Apelante.
Também não lhe assiste razão.
Com efeito, os autores com base no Princípio da Confiança
realizaram negócio jurídico sem a devida representação, ou seja, quanto as alegações
de que a ação anulatória foi uma simulação arquitetada pelos autores, após a análise
dos autos é mais correto inverter tal afirmativa, tendo em vista que foi a Santa Casa
que se valeu de acordo em inquérito civil para chancelar seus interesses privados.
Não se discute neste ponto sobre a propriedade do referido
imóvel ou sobre o laudo de risco de desabamento realizado pela Defesa Civil, pois tais
discussões não são cabíveis nesta ação, além de irrelevantes ao desfecho do fato.
Como bem se salientou acima, a ação objetiva anular negócio
jurídico com lesão por causa objetiva, que acarretou prejuízo premente aos autores,
pessoas sem formação jurídica e técnica, que foram cerceados de defesa sem
representação legal cabível.
Fato é que o acordo chancelou interesses privados da Santa
Casa Apelante, por meio de um inquérito civil público que é um caminho que se
presta apenas para interesses coletivos, individuais homogêneos e difusos.
A instauração do inquérito civil público em nada ampara a tese
do Apelante, já que não se pode por meio de um procedimento administrativo afastar a
aplicação da justiça no caso concreto.
Atualmente, após a vigência do novo Código Civil, os contratos
passaram a ser fundamentados na função social do contrato, na boa-fé objetiva, na
eticidade, ou seja, proteções que limitam a autonomia privada e sua autotutela.
Não houve lealdade por parte do contratante que munido de
patrono buscou resolver de forma imperativa uma demanda que já tramitava em outros
processos com a chancela protetiva da Defensoria Pública, conforme se denota nos
autos.
A questão não é apenas se havia ou não risco de desabamento,
mas é que nada foi feito para assegurar a moradia dos autores, deixando-os a própria
sorte após os parcos meses que receberiam as prestações de auxílio.
A nulidade que encerra este negócio jurídico é o
aproveitamento do estado de necessidade dos autores, para reaver imóvel sem oferecer
para o outro acordante a opção ou não de realizar negócio eivando o consentimento de
forma não legítima.
Consequentemente, não se modifica a decisão do juízo de
primeiro grau sobre a devolução da posse do referido imóvel ao apelante.
Bem é aplicável neste ponto a Súmula 59, do TJRJ, que cita
que:
“Somente se reforma a decisão concessiva ou não da
antecipação de tutela, se teratológica, contraria a Lei ou a
evidente prova dos autos.”
Desta feita, não se dá provimento ao recurso do Segundo
Apelante.
Quanto ao Terceiro Apelante Município de Campos dos
Goytacazes, também não assiste razão em suas alegações.
Em preliminar não há que se falar em ilegitimidade passiva ad
causam, tendo em vista que participou do referido acordo nulo, deixando ao
desamparo material, social e jurídico os autores apelados.
Apesar de tal atuação do ente se deu tendo em vista laudo
técnico da Defesa Civil, para adoção de providências necessárias a eliminação de risco
e retirada da família que ocupava o bem imóvel, sua participação também não [
legitimou as razões que se deram tal acordo, ao contrário também poluíram o referido
negócio jurídico.
Mais uma vez, insista-se, não houve a proteção dos autores,
pessoas sem instrução, que compareceram ao chamado de órgãos públicos e ente
público, para um verdadeiro massacre jurídico.
Houve uma disparidade nas armas jurídica.
Será que ainda há dúvida que os autores não teriam vez perante
as vozes legais do MP e do Município?
Apesar da alegação de que a instauração de inquérito civil
público observou o principio da legalidade estrita, não merece amparo a tal afirmação
do apelante.
O acordo cristalizado nestes autos é ilegal, ilegítimo, pautado
de nulidade e com uma lesão objetiva de clareza transparência.
A atuação municipal, segundo a teoria da causalidade adequada,
deu causa a prejuízo material e social aos autores.
Ora, há conduta do Município, nexo de causalidade e dano
acarretado aos autores, logo, há responsabilidade, dever jurídico, em razão da sua
participação negligente.
Enfim, nega-se provimento ao recurso municipal.
Diante disso, REJEITA-SE A PRELIMINAR DO
TERCEIRO APELANTE E NEGA-SE PROVIMENTO AOS RECURSOS DO
PRIMEIRO APELANTE, DO SEGUNDO APELANTE E DO TERCEIRO
APELANTE, PARA MANTER A SENTENÇA NOS SEUS PRÓPRIOS
FUNDAMENTOS, na forma regimental.
Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2009.
SIDNEY HARTUNG,
Desembargador Relator"
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parabéns aos defensores que bancaram e ganharam esta briga. Wilson Souza
ResponderExcluirsou estudante. corajosa a tese, heim! parabéns. um dia vou ser defensor tb. assinado: futuro colega.
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